27 Novembro 2012
Publicamos uma adaptação da contribuição do teólogo moral norte-americano Charles E. Curran ao livro Not Less Than Everything: Catholic Writers on Heroes of Conscience, from Joan of Arc to Oscar Romero, editado por Catherine Wolff, que será publicado pela editora HarperCollins em fevereiro de 2013. O padre redentorista Bernard Häring (foto) completaria 100 anos no último dia 10 de novembro.
Curran é padre de Rochester, na diocese de Nova York, e professor da cátedra Elizabeth Scurlock de Valores Humanos da Southern Methodist University, em Dallas. Em 1968, quando lecionava na Catholic University of America, entrou em desacordo com o Vaticano e com o Papa Paulo VI por causa da encíclica Humanae Vitae. Em 1986, após um processo judicial, Curran foi expulso da universidade, e o Vaticano o destituiu de suas credenciais como teólogo católico.
O artigo foi publicado no jornal National Catholic Reporter, 24-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O meu apreço por Bernard Häring foi resumido na dedicação do meu livro de 1972, Catholic Moral Theology in Dialogue – "Para Bernard Häring CSsR, professor, teólogo, amigo e ministro sacerdotal do Evangelho na teoria e na prática, por ocasião do seu sexagésimo aniversário".
Como um padre muito jovem da diocese de Rochester, Nova York, eu estava fazendo meu trabalho de doutorado na Academia Alfonsiana em Roma, de 1959 a 1961. Eu estava programado para lecionar teologia moral no seminário diocesano de Rochester. Depois de quatro anos de teologia na Universidade Gregoriana, eu estava me abrindo um pouco com relação à minha orientação teológica conservadora e o meu compromisso com a teologia moral dos manuais. Eu não escrevi a minha dissertação com Häring, mas estava realmente impressionado e alimentado pelas suas aulas (em latim), nas quais ele desenvolvia a sua abordagem à teologia moral. Com o meu convite, muitos colegas padres que viviam comigo na faculdade norte-americana em Roma vieram para ouvi-lo e ficaram muito impressionados.
Em 1961, eu comecei a lecionar no seminário de Rochester, tentando imitar a abordagem de Häring. Um ano, no início do meu ensino de um curso de dois semestres, eu não abri o manual requerido até o dia 1º de março. Primeiro, eu quis mostrar a profundidade e a amplitude total da vida moral cristã antes de entrar no manual. Mais tarde, eu li na autobiografia de Häring que ele fizera a mesma coisa quando começou a ensinar teologia moral.
Eu fui o principal motor para trazer Häring para os Estados Unidos em 1963 para dar palestras e oficinas durante o verão. Nos anos subsequentes, Häring voltou muitas vezes para os Estados Unidos durante o verão, mas também viajou por muitas partes da África, da América Latina e da Ásia, dando palestras e retiros.
No dia 29 de julho de 1968, a encíclica Humanae Vitae, do Papa Paulo VI, que reiterava a condenação da contracepção artificial para os cônjuges, foi divulgada ao público. Eu era o líder e depois porta-voz do que começou como um grupo de 10 de nós, principalmente da Universidade Católica dos Estados Unidos, que leram a encíclica naquela noite e elaboraram uma resposta a ela. Nossa declaração de apenas 10 parágrafos concluía que os católicos poderiam responsavelmente decidir a usar o controle de natalidade se fosse para o bem do seu casamento.
Depois de terminar a declaração, telefonamos para uma diversos outros teólogos do país em busca de mais assinaturas. Contatei Häring na Califórnia, li para ele a declaração e fiquei em êxtase quando ele concordou em assinar. Na manhã do dia 30 de julho, eu atuei como porta-voz para os então 86 estudiosos católicos, incluindo Häring, que assinaram a declaração. No fim, mais de 600 assinaram.
Essa resposta direta e rápida à encíclica despertou a atenção mundial. O próprio Häring, à época e depois, sem dúvida, tornou-se o proponente mais proeminente e público no mundo católico da discordância com relação à conclusão da encíclica.
No verão de 1979, fui informado de que eu estava sob investigação da congregação vaticana para a Doutrina da Fé pela minha discordância sobre diversas questões morais. Naquele outono, eu fui para Roma para consultar Häring e outros. Durante todo o processo, eu fiquei em contato próximo com Bernard.
Depois de muitas correspondências, ficou claro no fim de 1985 que a Congregação para a Doutrina da Fé iria tomar medidas contra mim, o que acabaram fizeram ao declarar que eu não era nem adequado nem elegível para ser um teólogo católico. No entanto, eles concordaram, sim, para que eu tivesse um encontro informal com o cardeal Joseph Ratzinger e algumas autoridades da Congregação em março de 1986. Eu podia levar um assessor. Ao longo de todo o tempo, Häring concordou que, se tal encontro ocorresse, ele iria me acompanhar.
A presença de Häring foi uma fonte de grande força e consolo para mim. Ele começou a sessão lendo um artigo de duas páginas intitulado "O frequente e duradouro dissenso da Inquisição/Santo Ofício/Congregação para a Doutrina da Fé". O texto era o melhor de Häring em sua fala franca com o poder. No fim, ele instou Ratzinger fortemente a aceitar um compromisso de que eu não iria lecionar ética sexual na Universidade Católica e de que não haveria condenação. O encontro terminou sem qualquer solução ou ação.
No dia seguinte, o quarto Domingo da Quaresma, seis de nós fomos à casa religiosa de Häring para celebrar uma liturgia que ele presidiu. O Evangelho era a parábola do filho pródigo. Häring, na homilia, olhou para mim e disse que a Igreja era o filho pródigo que havia tomado todo o meu tesouro e meu trabalho pela teologia moral e alimentado os porcos. Mas o Espírito Santo estava chamando a mim e aos demais presentes para assumir o papel do Pai e perdoar a Igreja. Só com um espírito de perdão e de esperança podemos continuar celebrando a Eucaristia. Ele terminou a homilia repetindo duas vezes que os cristãos são pessoas que têm esperança.
Nos últimos anos, muitas vezes eu fui encorajado pelo testemunho de Bernard Häring. Uma centralização defensiva continua marcando a atitude do Vaticano diante de quaisquer tentativas para trazer a mudança. João Paulo II reconheceu que houve uma crise na teologia moral, porque muitos teólogos morais hoje discordam do ensinamento papal. Mas os papas combateram veementemente essa mudança e até mesmo tomaram medidas punitivas contra os que discordavam acerca de assuntos que não são essenciais para a fé católica.
Enquanto isso, todos nós temos visto famílias e amigos abandonarem a Igreja Católica por causa da sua intransigência. Muitas pessoas têm me perguntado se eu vejo quaisquer sinais de esperança na Igreja hoje. Eu lembro a eles e a mim mesmo que a esperança não é esperança se você a vê na sua frente. São Paulo nos diz que a esperança está esperar contra toda esperança. A esperança é acreditar na luz no meio da escuridão e na vida no meio da morte.
Bernard Häring foi verdadeiramente uma pessoa de esperança. Ele enfrentou a morte muitas vezes na Segunda Guerra Mundial. Ele quase morreu nas operações para tentar curar o seu câncer de garganta. A pessoa que falou em mais línguas para mais pessoas em todas as partes do mundo do que qualquer outro teólogo, pregador ou missionário depois teve as suas cordas vocais removidas e teve que aprender a falar com o esôfago, o que não era fácil nem para ele nem para os seus ouvintes. Nos últimos anos de sua vida, ele experimentou o retorno de uma centralização e autoritarismo que ele achava que haviam sido derrotados pelo Concílio Vaticano II.
O testemunho de Häring de amor crítico pela Igreja, a sua franqueza e a sua esperança, mesmo no meio da escuridão, permitiram-lhe continuar a luta pela reforma da Igreja. O seu testemunho dá esperança e força para todos.
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Bernard Häring, um testemunho de amor crítico pela Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU